A Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira, 18 de novembro de 2025, uma emenda que muda uma das bases mais antigas da democracia brasileira: o direito de voto para presos provisórios. Por 349 votos a favor, 40 contrários e uma abstenção, os deputados alteraram o Código Eleitoral para barrar o voto de qualquer pessoa detida — mesmo que ainda não tenha sido condenada. A medida, proposta pelo deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS), foi incorporada ao Projeto de Lei 5.582/2025 (PL Antifacção) e agora segue para o Senado Federal. O texto, se aprovado, derruba um princípio da Constituição de 1988 que, por mais de 37 anos, protegeu a presunção de inocência. E isso não é só uma mudança técnica. É uma virada ideológica com impacto real: mais de 209 mil pessoas em prisão provisória no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, perderão o direito de escolher seus líderes — mesmo que nunca tenham sido julgadas.
Um direito que existia por princípio, não por favor
Desde a redemocratização, o Brasil manteve uma postura rara no mundo: presos provisórios votavam. Não porque o Estado facilitava, mas porque a Constituição garante que ninguém é culpado até que uma sentença final, irrecorrível, seja proferida. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) regulamentou isso em 2010, com a Resolução nº 23.315, que obrigava a instalação de seções eleitorais em presídios com pelo menos 20 eleitores. Em 2024, mais de 6.000 presos provisórios votaram nas eleições municipais. Não era um número grande, mas era simbólico. Significava que, mesmo atrás das grades, alguém ainda era considerado cidadão. Agora, esse símbolo desaparece.“É uma regalia”, diz Van Hattem — e outros concordam
Marcel Van Hattem foi claro: “Não faz sentido a pessoa que está afastada do convívio social decidir nas urnas o futuro da sociedade.” Para ele, o voto exige liberdade e autonomia — coisas que, segundo ele, não existem na prisão. A emenda argumenta que a suspensão não é pena, mas “reconhecimento de um limite fático e moral da cidadania”. Curiosamente, o texto também justifica a mudança com razões práticas: reduzir custos de segurança e logística para transportar mesários e urnas para presídios. Mas a conta não bate. Em 2024, o TSE gastou cerca de R$ 1,2 milhão para operar 217 seções em unidades prisionais. Menos de 0,01% do orçamento eleitoral total. Será que o que está em jogo é mesmo o custo?Um voto político? A acusação de Lindbergh Farias
Lindbergh Farias (PT-RJ), líder do Partido dos Trabalhadores na Câmara, votou a favor — mas com uma ressalva pesada: “Vamos votar ‘sim’ sabendo que é inconstitucional.” E então veio a bomba: “Parece que o Partido Novo já abandonou Bolsonaro. Agora quer tirar o voto dele.” A acusação é delicada, mas não sem fundamento. Jair Bolsonaro está preso provisoriamente desde abril de 2024, sob investigação por suposto financiamento ilegal de campanhas e ameaça à democracia. Se a emenda for aprovada no Senado, ele não poderá votar — nem mesmo se candidatar, caso seja solto antes das eleições de 2026. O fato de 13 deputados do PT, incluindo Benedita da Silva e Alencar Santana, terem apoiado a medida, mostra que a divisão não é apenas entre partidos, mas entre princípios e oportunidades políticas.
Quem ganha e quem perde com essa mudança
O impacto é desigual. A maioria dos presos provisórios no Brasil são homens negros, pobres, sem escolaridade completa — e muitos presos por crimes menores, como tráfico ou furto. Eles não têm recursos para recursos jurídicos longos. São os mais vulneráveis à morosidade da Justiça. Por outro lado, os presos políticos, como Bolsonaro, têm acesso a equipes de advogados de elite, e sua prisão é um caso de alta visibilidade. A emenda, portanto, atinge em cheio os mais fracos — e pode ser usada como ferramenta para silenciar oposição. É uma mudança que, em nome da ordem, enfraquece a democracia. O próprio TSE já alertou em 2020 que qualquer restrição ao voto de presos provisórios “desconfigura o núcleo da cidadania”.O que vem a seguir: o Senado e a Constituição
A próxima batalha será no Senado Federal, onde a votação está marcada para 27 de novembro de 2025. Lá, o texto enfrentará resistência de juristas, defensores dos direitos humanos e até alguns senadores de partidos de centro. A questão não é apenas política — é jurídica. A emenda viola o artigo 15 da Constituição, que só permite a suspensão dos direitos políticos após condenação transitada em julgado. Se for aprovada, será imediatamente questionada no Supremo Tribunal Federal. O STF já decidiu, em 2012, que a prisão provisória não afeta o direito de votar. E, em 2021, reafirmou que “a privação da liberdade não implica na perda da cidadania”. A luta não acaba na votação do Senado. Ela só começa.
Um precedente perigoso
O Brasil não é o único país a discutir esse tema. Nos Estados Unidos, estados como Florida e Iowa já tiveram leis que impediam ex-presidiários de votar — e foram derrubadas por tribunais. Na Alemanha, a Corte Constitucional decidiu em 2019 que a suspensão do voto só é legítima se a pena for superior a dois anos. Mas aqui, a mudança vai além: não se trata de condenados, mas de acusados. Isso abre a porta para que, no futuro, qualquer pessoa detida por investigação — mesmo sem prisão — possa ser excluída do processo eleitoral. É um passo para uma democracia de segunda classe. E o pior: foi aprovado em regime de urgência, sem audiências públicas, sem debate profundo. A sociedade mal teve tempo de reagir.Frequently Asked Questions
Como isso afeta os presos provisórios que ainda não foram julgados?
Mais de 209 mil pessoas atualmente detidas sem condenação final perderão automaticamente o direito de votar. O cancelamento do título de eleitor será feito pelo TSE assim que a prisão for registrada. Isso significa que, mesmo que sejam inocentes, não poderão escolher prefeitos, vereadores ou presidentes. A justificativa de que a prisão provisória é temporária não importa: o direito é suspenso por definição, não por decisão judicial.
Essa emenda é constitucional?
Na visão da maioria dos juristas, não é. A Constituição de 1988, no artigo 15, só permite a suspensão dos direitos políticos após sentença transitada em julgado. O Supremo Tribunal Federal já decidiu isso em 2012 e reafirmou em 2021. A emenda, portanto, é claramente inconstitucional e será derrubada pela Corte, caso seja sancionada. O que está em jogo é o poder do Legislativo de alterar direitos fundamentais sem revisão judicial.
Por que o Partido Novo está apoiando isso?
Além da justificativa oficial de redução de custos, há uma leitura política: o Partido Novo, que já se distanciou de Bolsonaro, pode estar tentando se posicionar como “anti-corrupção” e “anti-impunidade”. Tirar o voto de presos provisórios — especialmente de figuras como Bolsonaro — é uma forma de mostrar força contra o que chamam de “privilégios”. Mas o efeito colateral é a erosão de direitos de milhões de pobres e negros, que não têm acesso a advogados caros.
Quem mais votou a favor da emenda além do Partido Novo?
A emenda teve apoio transversal: deputados do PL, União, PT e até da bancada feminina, como Benedita da Silva. Isso mostra que o tema não divide apenas ideologicamente, mas também por pragmatismo político. Muitos parlamentares temem ser rotulados como “pro-criminosos” se votarem contra. O resultado é uma aprovação que reflete mais o clima de medo do que um debate sério sobre direitos civis.
O que acontece se o Senado aprovar e o presidente sancionar?
A lei entrará em vigor imediatamente, mas será contestada no Supremo Tribunal Federal por meio de ações diretas de inconstitucionalidade. O TSE terá de cancelar automaticamente os títulos de eleitores em presídios. As eleições de 2026 serão as primeiras sem voto de presos provisórios — e provavelmente as primeiras a serem questionadas pela ONU e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos por violação de tratados internacionais assinados pelo Brasil.
Há precedentes históricos dessa mudança no Brasil?
Nunca antes na história da democracia brasileira o voto foi retirado de pessoas sem condenação final. Durante a ditadura militar, a cassação de direitos políticos era comum — mas sempre com justificativa de “segurança nacional”. Agora, a justificativa é de “ordem pública” e “custo operacional”. É um retrocesso disfarçado de eficiência. A Constituição de 1988 foi feita para evitar exatamente isso: que o Estado use a prisão como instrumento de exclusão política.

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